“VAI PARA SUA TERRA. VAI EMBORA”

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Publicado el 01/11/2009

Bolivianos formam hoje um dos maiores grupos de imigrantes em São Paulo. Trabalham em regime de semiescravidão nas confecções de roupas em São Paulo, por baixos salários e jornadas extenuantes de trabalho. Costumam trocar salário de US$ 30 mensais na Bolívia por pagamentos que vão de US$ 300 a US$ 500 (cerca de R$ 1 mil) no Brasil, muitas vezes em fábricas irregulares, que não têm autorização para funcionar e nem recolhem impostos. Muitos imigrantes são irregulares.

A reportagem é de Adauri Antunes Barbosa e publicada pelo jornal O Globo, 11-10-2009.

 

Para os bolivianos, muito tímidos, é difícil admitir a discriminação. Aos poucos, alguns vão contando que, nas ruas, são xingados e mandados embora.

 

— De vez em quando alguém fala assim: ‘Vai para a sua terra. Vai embora daqui’ — revela a costureira Rosária Mancila, há cinco anos no Brasil.

 

Natural de Oruro, capital de um dos estados da Bolívia, Rosária, de 30 anos, mora em São Paulo com o filho de 4 anos. Não sabe se voltará ao seu país.

 

Aos 36 anos, Miguel Jimenez Gonzalo, de Santa Cruz de La Sierra, tenta não responder, mesmo aparentando ter vontade de falar das dificuldades pelas quais passa no país. Pensa antes de falar, mas admite:

 

— Já vi brasileiros xingando bolivianos. Falam palavrão, coisa feia, a gente nem sabe direito o motivo.

 

Outros bolivianos, como Javier Huanca Torres, de 34 anos, dizem que nunca viram cenas de discriminação.

 

— Pelo menos eu nunca vi — afirma o costureiro, que veio de Cochabamba há dois anos, onde era pedreiro.

 

Muitos imigrantes temem ser vítimas de deportação, sobretudo os que vivem de forma irregular no Brasil. Mas eles também têm elogios ao país.

David Condore Queso, que veio de La Paz e está em São Paulo há quatro anos, destaca a oportunidade de trabalhar no Brasil. Diz que os brasileiros respeitam muito sua família. Sua mulher, que cuida do casal de filhos pequenos, concorda balançando a cabeça.

 

— Vivo bem e não posso reclamar — conta David, que trocou a profissão de vendedor pela costura.

Para o coordenador da Pastoral dos Migrantes, padre Mário Geremia, na tradição indígena dos bolivianos a solidariedade ajuda na sobrevivência dos pobres. Ele diz que o boliviano sofre com sua timidez:

— O boliviano é um indígena, não é de falar muito. Por isso sofre rejeição. Falam que são sujos, mandam embora, xingam, dizem que não têm disciplina. São muito discriminados.

 

De acordo com o padre, além de bolivianos, há paraguaios, peruanos, equatorianos e colombianos. Os problemas são comuns a imigrantes de qualquer país:

 

— Todos querem uma vida melhor. Querem trabalho, possibilidade de viver melhor, serem respeitados.

 

Até pessoas que já viveram a discriminação, como os nordestinos, demonstram intolerância. Padre Mário conta que organizou uma festa com imigrantes na Vila Guilherme, bairro onde moram principalmente nordestinos, discriminados nos anos 1950. E se surpreendeu com a reação negativa da comunidade.

 

— Depois da festa, quando abri o e-mail, tinha uma enxurrada de ataques contra os bolivianos — revela.

 

Xenofobia verde-amarela

 

A grande maioria dos brasileiros esbraveja, critica, define como absurdas e condena as restrições cada dia mais severas à imigração impostas por países europeus (em especial a Espanha) e pelos Estados Unidos. No entanto, essa mesma maioria é amplamente favorável à implantação de condições igualmente restritivas à entrada de estrangeiros que pretendem viver no Brasil.

 

A reportagem é de José Meirelles Passos e publicada pelo jornal O Globo, 11-10-2009.

Essa atitude aparece de forma muito clara no mais recente Relatório do Desenvolvimento Humano, do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), divulgado dias atrás. Ele registra que apenas 9% dos brasileiros são favoráveis à liberação da entrada de estrangeiros no país.

 

Quase a metade da população mdash; 43% — é a favor de limitar ou proibir a imigração. Outros 45% querem que o governo só permita que estrangeiros ingressem “desde que haja empregos disponíveis”. Trata-se de um argumento que não passa de uma simples cristalização de um equívoco.

 

“O receio de os migrantes serem responsáveis pela diminuição do número de empregos ou dos salários da população local, constituindo um fardo indesejável para os serviços locais, ou custarem muito dinheiro aos contribuintes, é geralmente exagerado.

 

Quando as competências dos migrantes complementam aquelas das populações locais, ambos os grupos saem beneficiados”, conclui a pesquisa.

 

É a primeira vez que o tema da migração é incluído no relatório anual do Pnud. Segundo Helen Clark, a administradora do programa, a equipe de técnicos constatou que é comum esse assunto ser tratado pela mídia de forma a torná-lo impopular.

 

A avaliação é a de que tal comportamento se deve basicamente ao preconceito e à xenofobia:

 

— Estereótipos negativos que representam os migrantes como alguém que nos vem roubar os empregos, ou que vive às custas do contribuinte, abundam na mídia e na opinião pública, especialmente em épocas de recessão — disse ela.

 

“Vivemos o mito da sociedade inclusiva”

Para Carolina Moulin, professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, o índice de rejeição dos brasileiros aos imigrantes reflete algo que os especialistas no setor já sabiam, ainda que não dispusessem de cifras concretas a respeito.

 

Para ela, foi como se tivessem colocado um espelho diante de cada brasileiro, e o que a maioria viu foi uma verdade que, até aqui, era camuflada pela hipocrisia:

 

 — O resultado indica claramente como na realidade vivemos o mito de uma sociedade inclusiva. E mostra que na hora que testamos, de fato, as nossas práticas democráticas fica claro o quanto somos fracos nesse quesito. E isso, por sua vez, coloca à prova a nossa capacidade de hospitalidade — disse ela.

 

Outra especialista no setor, Teresa Sales, do Centro Josué de Castro, de Recife, autora do livro “Brasileiros longe de casa” e pesquisadora do Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), endossou:

 

— O resultado dessa pesquisa é muito interessante porque deixa claro que há um falso consenso de que o Brasil é um país muito aberto aos estrangeiros.

 

O que acontece é que recebemos muito bem, com muita cordialidade, os turistas. Quanto mais o estrangeiro se move em direção ao Norte do país, mais bem recebido ele se sente. Mas, na verdade, não queremos essa gente morando aqui.

 

De acordo com Teresa, o comportamento dos brasileiros em relação aos imigrantes estrangeiros é semelhante ao do racismo:

 

— Essa reação, agora quantificada, é muito parecida com a questão do negro no Brasil. Existe uma contradição básica entre o que dizemos e o que pensamos. No fundo, a nossa postura mostra que, ao contrário do que gostamos de parecer, não nos diferenciamos do resto do mundo.

 

O estudo do Pnud lembrou que, quando as pessoas se deslocam, atravessando fronteiras, elas “embarcam numa viagem de esperança e de incertezas”. E constatou algo que derruba um lugar-comum: na verdade, é minoria a massa de imigrantes que busca melhores condições de vida nos países ricos.

“A perspectiva que constitui tipicamente o ponto de partida de todas as discussões sobre migração é a dos fluxos que se deslocam a partir dos países em desenvolvimento, em direção aos ricos da Europa, da América do Norte e da Australásia”, diz o estudo.

E em seguida corrige esse enfoque, dizendo que menos de 70 milhões de pessoas mudaramse para um país rico.

 

A maioria dos migrantes internacionais — 200 milhões — foi de um país em desenvolvimento para outro desse mesmo nível, ou de um país desenvolvido para outro igual.

 

Para Carolina, a professora da PUC, o alto índice de rejeição dos brasileiros às pessoas que vêm do exterior é também um reflexo da política de imigração em vigor, derivada do governo militar:

 

— Ainda temos uma legislação jurássica, com a imigração vinculada aos ministérios de Justiça e do Trabalho. Isso facilita a pressão dos sindicatos que fazem lobby contra a entrada de estrangeiros sob o argumento de que “quem vai pagar as contas somos nós”.